Mirinha, 2021

No domingo foi dia de ir à horta. A expressão “ir à horta” num apartamento no meio de Amesterdão corresponde a levantar-me do sofá e deslocar-me até à varanda. Não há a arte de revolver o terreno com enxada, nem de ir às bicas encher bidões d’água com carrinho de mão. Reduzido a um mero caixote de 3m quadrados tento meter em prática os ensinamentos que o meu avô me transmitiu, e mesmo assim passo o dia todo a ver se as plantas não morrem. Não é só o peso dos anos que faz o Mirinha um mestre artesão da horticultura, é a sua dedicação, o seu toque e o seu amor. Para ele, tudo tem a mesma ordem de importância. Semear, é o mesmo que colher. Cuidar, é o mesmo que ouvir. Todas as vezes que ele testemunha vida a brotar do solo, é como se os netos lhe tivessem a nascer à sua frente. Só essa ligação emocional é que o faz, colheita após colheita, continuar a lavrar a terra com as suas mãos calejadas, para que depois, sentado à mesa com a sua garrafa de navegante e metade de um rábano, passe o tempo a contar as novidades da horta aos seus rebentos.

505, 2022

Depois de 45 min a pedalar pela vida rotineira, chego ao trabalho. Subo as escadas, faço o meu café da manhã, subo outras escadas e sento-me à frente do computador para iniciar mais um dia de labuta. Vamos lá a mais do mesmo, pensei eu. Meia hora depois, a Catarina liga-me. E é ai que um sentimento estranho e raro interrompe a minha lenga-lenga de dia porque não me lembro se a Catarina alguma vez me ligou. Sinto-me apreensivo. Atendo e em voz trémula diz-me que o Simão teve um acidente em Marrocos. Deixo o trabalho e vou a correr abraçar a Mafalda. Isto foi dia 17 de Novembro de 2021. As horas, dias e meses seguintes foram uma térmica de emoções, onde o choro planava junto com o sorriso. Ainda é difícil não ter a espontaneidade do Simão, e tudo o que essa brisa quente trazia.

Nos primeiros dias do novo ano, fomos ao apartado 505 do cemitério dos prazeres e levei a minha câmara porque gostaria de registar o momento da nossa visita ao Simão. Tinha uma ideia para a fotografia e o Fred fez parte dela. Essa imagem acabaria por ser a segunda do projeto 1.365.

Em Fevereiro voltámos a Portugal para celebrar o aniversário da mãe da Mafalda, e a Catarina sendo a vilã de boas notícias diz-nos que o Fred está doente. A puta da ironia leva-me de volta à tal imagem.

Fomos seguindo remotamente o seu estado de saúde, dando-lhe apoio impotente em forma de palavras motivadoras, e o ser dele ponderado dizia-nos a sua nova rotina. Entre tratamentos e ressacas, conseguimos abraçar-nos no casamento do amigo Necas. Lembro-me estarmos sentados num sofá a meter a conversa em dia e no meio de sorrisos e galhofas fiquei longe de pensar que esse abraço seria o último.

Os últimos dias deste velho ano, e durante a minha luta contra o jet lag, jogo as mãos ao telemóvel, meto um coração numa foto que a catarina acaba de partilhar, e de seguida ela liga-me. Atendo e outra vez de voz trémula diz-me que a labuta do Fred acabou. Partilhamos algumas palavras, desligo e vou abraçar a Mafalda.

A forma como esta imagem foi criada têm-me reconfortado durante estes dias. Ela passa uma mensagem de saudade mas a verdade é que estávamos todos intrigados com uma espécie de cola que estava agarrada ao mármore. O Fred ainda tentou arrancá-la. O que ele acabou por conseguir foi transformar a palavra saudade para cuidar, e é assim que quero lembrar-me dele.

O bufo d'avenida, 2021

Quando toca aquele impulso curioso de conhecer os arredores do nosso vilarejo, a tarefa é fácil, abre-se o computador e basta”googlar”. Imediatamente temos acesso ao tempo que precisamos pedalar e ao que vamos lá encontrar. Ao fim de 10 minutos, plano feito. Fecha-se o computador, atamos os atacadores das botas e abrimos a porta de casa. Curioso que o mesmo processo acontece quando planeamos uma viagem.

A compra de guias, foi substituída pela leitura de blogs. As escalas de um mapa em papel, tornaram-se algoritmos para calcular distâncias. Agora, puxamos pelo telemóvel e, imagine-se, ao pesquisar pelos “10 melhores pontos turísticos” de uma cidade o Google “oferece-nos” um verdadeiro catálogo patrimonial. Ganha-se a rapidez do acesso à informação, mas perde-se a novidade de um um blind date.

É claro, que ainda existem estímulos que tiram do nosso armário a capa aventureira. Assim sendo, visto-a e voo para a minha terra.

A vila onde cresci não têm entre as suas ruas um palácio e nem a sua ribeira é atravessada por uma ponte imponente. O património histórico que tem não causa uma exaustiva migração de turistas. Mas, em tempos, o bufo d’avenida foi a grande atração turística da minha aldeia. Pousado num chorão, era aí que passava os dias solarengos a fazer cara de mau aos que o visitavam. Bloqueados do uso da tecnologia pela sombra da árvore, aldeões, “passareiros” e até curiosos retrocediam no tempo e recuperando instintos exploradores procuravam por entre os ramos as penas pontiagudas desta ave. Debaixo dessa mesma árvore permanecia preservado o sentimento de descoberta – elemento raro hoje em dia.

Soube há pouco tempo que o bufo já não é da avenida. Depois de alimentar as nossas conversas de almoço, decidiu partir – espero que por sua iniciativa. Quero também acreditar que neste momento se encontrará pousado em outra árvore, noutra aldeia, fazendo as maravilhas de quem lá vive e enriquecendo o cardápio turístico desse mundo rural.